Quando o futebol foi “sequestrado” pelo presidente: como Bolsonaro transformou a Seleção em arma política?
Quatro da manhã no Rio. O vento do mar fazia tremular as bandeiras do Maracanã — e o amarelo e o verde, que deveriam ser só festa, viraram símbolo de uma disputa que ultrapassa o campo.
Quatro da manhã no Rio. O vento do mar fazia tremular as bandeiras do Maracanã. O amarelo e o verde deveriam brilhar como neon numa mesma linha. Mas agora, estavam rasgados em dois pedaços: um seguia para os comícios de Bolsonaro, o outro se escondia atrás do palco de Lula.
1. A primeira vez que a camisa “votou”
Outubro de 2022, último fim de semana antes da eleição. Avenida Paulista, São Paulo. Meio milhão de pessoas vestindo a 9 da Seleção gritava “22” — o número de Bolsonaro na urna eletrônica.
Ninguém falava de futebol. Só de política. Um vendedor de cerveja me disse: “Irmão, a camisa é o voto costurado no corpo.”
Daquele dia em diante, o uniforme amarelo perdeu cor. Ganhou o vermelho da disputa.
2. O vídeo de Neymar
Ele aparece na beira da piscina, faz o gesto do “22” com a mão, sorri como quem acabou de converter um pênalti. Dez segundos. Vinte milhões de visualizações.
Os comentários explodiram: “Você é meu ídolo!” — “Você traiu o Brasil!”
Montagens surgiram com Neymar como ponta-direita de Bolsonaro. Legenda: “Driblando a democracia.”
No dia seguinte, o ônibus da Seleção foi cercado por protestos. Um cartaz no vidro dizia: “Futebol não é política? Então prova.”
3. 8 de janeiro: a camisa invade o Congresso
Tarde de domingo em Brasília. Subi a rampa da Praça dos Três Poderes junto com a multidão. Números familiares ao meu lado: 10, 11, 23... Só que agora, nas mãos não havia bandeiras, mas pedaços de madeira.
O som dos vidros quebrados soava como apito final. Cadeiras do Supremo arrastadas e incendiadas. As chamas lambendo o brasão do país no teto.
Não sabia se assistia a um jogo ou a um golpe. Só tinha certeza de uma coisa: pela primeira vez, a camisa entrou num boletim de ocorrência: “Suspeito vestia uniforme da Seleção Brasileira durante a invasão.”
4. A verdade de Kaká
Antes da Copa, Kaká deu entrevista. Disse: “Muitos brasileiros não torcem mais pela Seleção porque a camisa lembra outra coisa.”
O corte de 15 segundos viralizou. O comentário mais curtido dizia: “Ele falou por mim.”
Mandei pro meu pai. Ele respondeu com o emoji de mão no rosto. Desde 1982 ele usava o manto amarelo. Hoje, guarda a camisa no fundo do armário, como quem esconde uma velha carta de amor.
5. A tentativa de “lavar” a camisa
Em cada jogo, o perfil oficial da Presidência postava a mesma cena: Lula de amarelo e verde, com a legenda “Vamos, Brasil!”.
Os comentários se dividiam: “Presidente, não usa, é nossa armadura!” — “Presidente, usa sim, toma de volta!”
A camisa virou bola perdida, chutada de um lado pro outro. Na eliminação da semifinal, Lula não escreveu nada. Publicou apenas uma foto em preto e branco: Maracanã vazio, placar zerado.
Talvez ele também soubesse: tem coisa que não volta com apito.
6. O encontro no metrô
Manhã seguinte à final. Metrô lotado. Uma garota encostada na porta, camisa 92 de Richarlison, cochilava.
Um senhor resmungou ao lado: “Ainda tem coragem de usar isso?”
Ela abriu os olhos e respondeu baixo: “Eu visto o Brasil, não candidato.”
O vagão silenciou. Ali percebi: o futebol nunca nos traiu. Fomos nós que o empurramos para a linha de frente.
A camisa continua sendo a mesma. Suja está a mão, não o pano.
7. O jogo ainda não acabou
Bolsonaro já saiu do Planalto, mas sua sombra segue nas arquibancadas. Neymar se recupera de lesão, comentários fechados nas redes. Lula prepara outro discurso, com o título “Reconstrução”.
E nós? Uns cortam a camisa para virar pano de chão. Outros ainda a vestem na pelada da praia.
O suor vai desbotando o amarelo e o verde, trazendo de volta as cores de antes.
Talvez leve tempo. Talvez só até o próximo apito inicial.
O futebol brasileiro nunca cabe em noventa minutos. É como o nosso samba: mesmo fora do compasso, a gente continua dançando.
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